quarta-feira, 28 de março de 2012

A cronologia de Millôr Fernandes escrita por ele mesmo. E mais: Millôr pergunta e Millôr responde


Fábio Lau

Ele era um moleque das palavras no melhor sentido da expressão. Debochado com a vida e consigo mesmo, Millôr ousou escrever, desenhar e projetar sua própria biografia. Cheia de graça como deveria ser a narrativa de um homem que nasceu no subúrbio e cresceu na Zona Sul sem jamais perder o requebrado que só os sacolejos dos trens da Central podem e sabem produzir e ensinar. Eis a história de Millôr por ele mesmo.


Biografia
1924
Nascido Milton Fernandes, no Meyer, em 16 de agosto. Ou em 27 de maio? Ou em 27 de maio do ano anterior? Há desencontros de opinião na família. Na carteira de identidade: 27-05-1924. Meu amigo, Frederico Chateaubriand, sempre repetia, quando se falava que alguém estava "muito moço", isto é, aparentava menos que a idade que tinha: "Idade é a da carteira". Isto é, não adianta ter qualquer esperança contra a cronologia. No meu caso talvez a carteira esteja (um pouquinho) a meu favor.
1925
Morto meu pai. Nessa idade a orfandade passa impressentida. Mas a família - mãe com quatro filhos - cai de nível imediatamente.
1931
Entrada para a Escola Enes de Sousa, no mesmo Meyer, educandário dirigido por Isabel Mendes, mestra extraordinária que mais tarde receberia a homenagem de ter o colégio batizado com o seu nome. Enes de Sousa, só fui saber quem era muitos anos mais tarde, nas memórias de Pedro Navas. Um abolicionista, se é que isso existe.
1934
Morta minha mãe. Sozinho no mundo tive a sensação da injustiça da vida e concluí que Deus em absoluto não existia. Mas o sentimento foi de paz, que durou para sempre, com relação à religião: a paz da descrença.
1934 a 1937
O período dickensiano, vendo o bife ser posto no prato dos primos, sem que o órfão tivesse direito. A família dispersa, os quatro irmãos cada qual pro seu lado, tentando sobreviver.
1938
15 de março: início da profissão de jornalista.
1938 a 1942
Liceu de Artes e Ofícios, onde um dia um professor deteve a massa dos alunos que desciam as enormes escadarias e, no meio de todo mundo, advertiu-me para que eu nunca mais zombasse de um colega. "As pessoas podem perdoar que você bata a sua carteira mas jamais perdoarão isso." Aprendi.
1941
Descubro, aos 17 anos, que não me chamo Milton, mas Millôr. Acho bom, não mudo, e o nome logo 'pega'.
1943
Começam os anos gloriosos da revista 'O Cruzeiro', que um grupo de meninos levaria dos estagnados 11.000 exemplares tradicionais a 750.000.
1944
Com tio Viola, chefe da gráfica 'O Cruzeiro', responsável por minha entrada no jornalismo. Viola, nome da família pelo lado italiano, teve recentemente uma possibilidade de glória. Eu vi o Papa João Paulo I dizer na televisão: "Todos os Violas do Brasil são meus primos." Mas morreu logo depois.
1946
A vida era bela e não sabíamos. Ou sabíamos? Aqui, Péricles Maranhão, autor da figura mais popular no humor brasileiro de todos os tempos: 'O Amigo da Onça'. Canhestramente faço o 'amigo' da foto.
1948
Na foto com Walt Disney, no estúdio dele, em Hollywood. Foto cuidadosamente posada. Nessa época eu ainda acreditava que Disney sabia desenhar. Só mais tarde, lendo sua biografia, aprendi que até aquela assinatura bacana com que ele autentica os desenhos é criação da equipe.
1949
Comecei a programar viagens fora do país. Primeiro em países da América do Sul, depois Estados Unidos. Deixei a Europa pro fim. Ainda era um acontecimento, viajar.
1950
O sucesso de 'O Cruzeiro' faz os jornalistas virarem notícia. Na redação, entrevista para o rádio, uma espécie de televisão da época, muito melhor, porque sem imagem.
1951
Viajo bastante pelo Brasil, coisa que sempre gostei de fazer, mas de carro, única forma de sentir as tremendas distâncias.
1952
Faço questão que o ministro brasileiro me batize nas águas do Rio Jordão, em Israel. Cada um tem o São João Batista que merece.
1953
Vice-campeão mundial de pesca ao atum na Nova Escócia. Nunca tinha pescado em minha vida e nunca peguei um peixe. Uma longa história que não cabe aqui.
1954
Compramos por Cr$ 2.700 um apartamento no Rio, num lugar mais ou menos distante, chamado Vieira Souto. Quando a granfinada soube, correu atrás de mim e o lugar virou 'status', o metro quadrado mais caro do mundo. Hoje a portaria da minha casa é o centro de prostituição - na sua quase totalidade exercida por travestis - da cidade. E de qualquer maneira a janela do meu apartamento, no quarto andar, é o local ideal para um sociólogo amador.
1955
Cobertura jornalística de campanha eleitoral. Aí conheci um jovem e engraçado político chamado Jânio e um homem esquisitamente ético chamado Milton Campos. Glória das glórias: ganho o primeiro lugar num concurso de desenhos em Buenos Aires, junto com Steinberg.
1956
Festival de Cannes, casamento de Grace Kelly. Este acontecimento até hoje rende mentiras por parte de muitos jornalistas. Guardo as minhas para momentos insípidos de conversação.
1957
Primeira exposição de desenhos no Museu de Arte Moderna, naquela época uma sala em baixo do Ministério da Educação. Melhor cenógrafo do ano. Por quê?
1958
Um ano ou dois antes, não estou certo, nosso grupo implantava o frescobol em Ipanema. Me lembro que antes apareceu uma besteira chamada 'la pelote basque sans fronton'. Eu me auto-proclamei campeão do frescobol do posto 9. Mantive o título por muito tempo: quando alguém jogava melhor do que eu, eu dizia que ele era do posto 8.
1960
Minha peça 'Um elefante no caos' estréia depois de uma briga enorme com a censura, transformada num excelente espetáculo pela genial direção de João Bittencourt. Uma das poucas vezes que um diretor melhorou um trabalho meu.
1961
Exposição de desenhos na Petite Galerie. Viagem ao Egito. Voltamos correndo com a renúncia de Jânio.
1963
Uma "questão religiosa" me coloca em conflito com a tradicional 'ética' dos 'Diários Associados'. Num discurso público, declaro: me sinto como um navio abandonando os ratos.
1964
Preparando o lançamento de 'O PIF-PAF', quinzenal que, em 1979, o serviço de informações do exército consideraria oficialmente como o início da imprensa alternativa no Brasil. Ainda bem, porque fecharam o jornal no oitavo número e eu fiquei devendo 21.000 cruzeiros. Meu valor na praça, então, era mais ou menos 500 cruzeiros mensais.
1965
"Liberdade, Liberdade", com Flávio Rangel. Um barato no meio do caos. Depois a censura proíbe. Como proíbe também, na íntegra, "Este mundo é meu", com Sérgio Ricardo.
1966
Cada vez me meto mais, profissionalmente, no teatro. Traduções, adaptações, originais. Representamos, no Largo do Boticário, a versão musical de "Memórias de um Sargento de Milícias", só com atores negros.
1967
Topo fazer o ator ao lado de Elizeth Cardoso e o Zimbo Trio. Uma experiência inesquecível, que outras ocupações não me deixaram repetir.
1968
O período efervescente do Pasquim. Parecia até que o país existia e que certa socialização, confundida com uma fugida fraternidade, era possível.
1970
Sempre viajando pelo Brasil.
1971
A 'parada' com o sistema engrossa. Quase não publicamos nada inteligível e o teatro fica praticamente impossível.
1972
Volto a me interessar por livros. Lanço ao mesmo tempo "A Verdadeira História do Paraíso" e "Trinta anos de mim mesmo", um resumo de anos de trabalho, numa noite de autógrafos denominada "Noite da Contra-incultura".
1973
Promovido a cidadão mineiro, afinal, pela Câmara de Conceição-de-Mato-Dentro.
1975
Exposição na Graffiti. Fim da censura no 'Pasquim'.
1976
Escrevo "É...".
1977
Na foto eu tenho a rara oportunidade de dar alguns esclarecimentos políticos a Mário Lago.
1978
Um trabalho muito mais difícil do que podia parecer: a adaptação de "Deus lhe Pague".
1979
Aos poucos, venho descobrindo mais o Rio Grande do Sul, onde só tinha estado há muito tempo. Vou me agauchando.
1986
Compro o primeiro computador, um XT a vapor, mesmo assim considerado por muitos uma extraordinária peça de ficção científica.
1988
Comemoração de 50 anos de jornalismo. 25 de março, na casa de Técio Lins e Silva e Regina Pimentel.
1996
Com Monique Duvernoy, Fernando Pedreira e Cora Ronai, em Auvers-sur-oise.
1997
Com Cora Ronai e Ocimar Versolato, jantando na casa de Monique Duvernoy e Fernando Pedreira.
2000
Lançamento do saite "Millôr Online", com festa no Copacabana Palace, Rio.
Aqui ele prepara seu melhor estilo ferino para atacar gente capaz de fazer perguntas impertinentes. Como ele mesmo, por exemplo: 

Por Millor Fernandes
Perguntas Cretinas
com Respostas Engatilhadas

P. O curso do rio, dá diploma?
R. Só se o sujeito for muito pro fundo.

P. Camisa de onze varas, vem com punho duplo?
R. Pelo contrário, vem com manga de colete.

P. Corrente marinha, serve pra amarrar cachorros?
R. Não, mas serve pra arrastar imbecis.

P. Dor de dente, dói?
R. Não, o que dói é a anestesia.

P. Na Bienal, tem fratura exposta?
R. Quando os críticos entram em desacordo.

P. Um perneta, pode passar a perna em alguém?
R. Se pode! Com um pé nas costas.

P. Quando você tem que engolir as próprias palavras, fica intoxicado?
R. Pra fazer uma perguntas dessas eu sei que é preciso ter estômago.

P. Você é dipsomaníaco ou só bebe pra esquecer?
R. Nem uma nem outra, estou ainda na fase social do Delirium Tremens.

P. As praças de pré, tem árvores?
R. Não, mas todos os galhos do quartel caem em cima delas.

P. Um químico, pode ter ações precipitadas?
R. Pode, mas isso nunca é uma boa solução.

P. Em dias de chuva a calha do telhado não vem mesmo a calhar?
R. Desde que o dono da casa não a mande arrancar porque tem uma telha de menos.

P. Patrão, o senhor podia me dar um aumento?
R. Agora não posso, meu filho, porque a situação é muito ruim, mas no ano que vem, se a empresa continuar a dar 34.000% de lucro, você será aumentado de acordo com o salário mínimo.

P. Um dentista, pode ser o pivô de um drama passional?
R. Pode. E se morrer nós lhe mandamos uma coroa.

P. Cão que ladra, não morde?
R. Geralmente. Mas tem cachorros que conhecem o provérbio e latem só pra tapiar.

P. A lareira é a mulher do lar?
R. Assim como a poltrona é a mulher do poltrão.

P. O jogo de roupa de baixo de uma garotinha hiper-super, pode ser considerado jogo de azar?
R. Eu que o diga. Noutro dia perdi tudo. Fiquei sem a roupa do corpo.

P. Quando um sujeito perde as estribeiras, vai procurá-las na seção de Achados e Perdidos?
R. Não, porque senão aquela seção ficaria cheia também de sujeitos perdidos de amor e por mulheres que são um achado.

P. Por quem o senhor me toma?
R. Pelo senhor mesmo, ué. Eu não o chamei de imbecil?

P. A matéria prima é parente do primo-inter-paris?
R. São primos entre si.

P. Dor aguda, leva acento circunflexo?
R. É bom, para que a dor surda não lhe escute os gemidos.

P. Cheque-mate, pode ser falsificado?
R. Com a vantagem de que o sujeito não acaba no xadrez. Já está.

P. Em cabelo de relógio se faz ondulação permanente?
R. Não, ele não tem tempo.

O gato e a barata
A baratinha velha subiu pelo pé do copo quase cheio de vinho, que tinha sido largado a um canto da cozinha, desceu pela parte de dentro e começou a lambiscar o vinho. Dada a pequena distância, que nas baratas vai da boca ao cérebro, o álcool lhe subiu logo a este. Bêbada, a baratinha caiu dentro do copo. Debateu-se, bebeu mais vinho, ficou mais tonta, debateu-se mais, bebeu mais, tonteou mais e já quase morria quando deparou com o carão do gato doméstico que sorria de sua aflição, no alto do copo.
- Gatinho, meu gatinho – pediu ela –, me salva, me salva. Me salva que assim que eu sair eu deixo você me engolir inteirinha, como você gosta. Me salva. - Você deixa mesmo eu engolir você? – disse o gato. - Me saaalva! – implorou a baratinha. – Eu prometo.
O gato virou o copo com uma patada, o líquido escorreu e com ele a baratinha que, assim que se viu no chão, saiu correndo para o buraco mais perto, onde caiu na gargalhada. - Que é isso? – perguntou o gato. – Você não vai sair daí e cumprir sua promessa? Você disse que deixava eu comer você inteira.
- Ah, ah, ah! – ria então a barata, sem poder se conter. – E você é tão imbecil a ponto de acreditar na promessa de uma barata velha e bêbada?
Moral: Às vezes a auto depreciação nos livra do pelotão.

Pasquim
Sob as mais variadas pressões, realmente violentas e sempre parecendo invencíveis, escrevi alguns artigos sobre a vida do Pasquim, na vida do Pasquim. Este, dramático, tinha sua razão de ser; o jornal estava, mais uma vez, pra ser fechado.
Réquiem Para um Jornal Humorístico
Assim, depois de quatro anos de muitas e gargalhantes pelejas, algumas das quais foram acompanhadas alacremente pelo leitor, e outras das quais o leitor nem pode tomar conhecimento, O PASQUIM chega ao número 200. Chega, não passa. Este é o último número do nosso jocoso semanário. Não é preciso que nossos amigos se embriaguem de alegria. Nem que nossos inimigos chorem. As coisas, como as pessoas, nascem, crescem e morrem, não é mesmo, Conselheiro? Só que O PASQUIM nasceu às gargalhadas. Como todo o mundo viu, cresceu, diminuiu e cresceu de novo, sempre castigando os mores, e hoje morre, rindo às bandeiras despregadas. Pois morre vendendo saúde (100. 000 exemplares) .
Morre atropelado. Uma força de alguns milhões de toneladas, uma teia de milhares de restrições e impedimenta, uma incalculável massa de obrigações e imposições, tornaram irrespirável a nossa já modesta ração de ar.
Dos seus quatro anos de hilariante vida, este zombeteiro hebdomadário pode contabilizar a glória de ter modificado fundamentalmente a linguagem dos outros jornais e ter influído muito na expressão falada da juventude e no estilo da comunicação publicitária. Durante quatro anos, este risonho jornal cuja maioria de sorridentes redatores não é ligada a nenhum grupo político, econômico, religioso, nacional ou estrangeiro, que tem como único objetivo o exercício de uma crítica geral e democrática a tudo e a todos (os poderosos e estabelecidos sendo, naturalmente, os mais criticados, pois, não há graça nenhuma em criticar os caídos), foi combatido pela maioria dos grandes órgãos de imprensa brasileira e por todos os detentores de algum poder, inconformados com um veículo que não tinha preço de venda a não ser o da banca e era dirigido por intelectuais inatacáveis porque sem fichas pregressas que os situassem em qualquer esquema de ilegalidade ou qualquer espécie de criminalidade, mesmo fiscal.
Chegando a circular com um máximo de 64 e um mínimo de 16 páginas, o ridente PASQUIM conseguiu sobreviver a tudo, até mesmo à prisão de todos seus redatores, provada inútil pelas próprias autoridades num processo que foi a consagração deste grupo de profissionais, pois demonstrou que eles tinham como único e total objetivo de vida o exercício de sua apaixonante profissão.
A coação física não impossibilitou a saída do jornal. Durante dois meses, ele circulou sem a colaboração de qualquer dos seus redatores habituais. Sobreviveu graças à solidariedade de inúmeros colegas. Saiu fraco e sobreviveu mal. Mas sobreviveu com a barriga doendo de tanto rir.
Agora, porém, temos que nos render e afirmamos, humildemente, a nossa derrota definita, diante da única coação irresistível, a coação intelectual, hoje absoluta. Uma censura inconstitucional - a Constituição vigente é explícita quanto à liberdade plena de jornais e revistas circularem sem qualquer censura, os responsáveis respondendo, naturalmente, diante da lei, pelos desmandos que cometerem - já vinha sendo exercida de maneira sufocante. Jornais pobres, como este, resistiam debilmente, gastando 20 horas para refazer um trabalho anteriormente feito em 10 e tendo o dobro e, às vezes, o triplo de gastos para a confecção do material de suas folhas. Coincidindo com o número 200, atingimos o limite das nossas possibilidades, fronteira natural de nossas ilimitadas impossibilidades. As poucas normas que ainda havia foram substituídas por um desvairo total das canetas pilotis, em que não há nem mesmo aquilo que se poderia exigir como último direito do cidadão - o respeito ao seu trabalho. Nosso trabalho, mesmo os nossos piores adversários reconhecem que o fazemos com conhecimento e seriedade. Trabalho de criação, único, pois artigos e desenhos humorísticos não podem ser substituídos de um momento para o outro como se fossem simples reproduções de discursos ou resenhas de acontecimentos sociais.
Mas o importante é que esta despedida não se alongue nem se transforme numa inútil exposição de motivos. E que, sobretudo, não seja triste. Só fechamos porque nos falta a competência da maleabilidade. Fechamos porque fechamos. O mundo não vai acabar. O Brasil vai continuar. Acontece que há momentos em que certos países não produzem determinados produtos que noutras épocas já produziram em abundância e que voltarão a produzir um dia.
Agora, parece, não é o momento propício para o plantio de facécias. Esperamos apenas que, daqui a cinqüenta anos, quando os especialistas estiverem saboreando os magníficos produtos satíricos de então, alguém se lembre de nos fazer justiça: "É, 73 não foi um bom ano para humorismo!"

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