quarta-feira, 28 de março de 2012

Cecília Coimbra: "Algumas verdades sobre a Comissão da Verdade"


Da Redação

No dia em que jovens brasileiros têm confronto marcado com defensores da ditadura militar, uma das principais vozes a clamar pela Justiça contra o arbítrio, Cecília Coimbra, defende em artigo uma mudança de rumos na chamada Comissão da Verdade: “é preciso não ter medo. É preciso ter coragem de dizer”, diz, repetindo as palavras de um dos líderes do movimento contra a ditadura, Carlos Marighela.

Por Cecilia Maria Bouças Coimbra*

“É preciso não ter medo,
é preciso ter a coragem de dizer.”
(Carlos Marighella, Rondó da Liberdade).

Se acompanharmos as esparsas notícias veiculadas pelos meios de comunicação hegemônicos em nosso país, pouco, muito pouco saberemos do que trata a Comissão Nacional da Verdade, sancionada, em novembro de2011, pela Presidente da República.



Estas pequenas notícias midiáticas, vêm produzindo determinadas subjetividades hegemônicas (modos de ver, perceber, sentir, pensar, agir) sobre a história recente do Brasil. Ou seja, apenas parcelas mais conservadoras, algumas saudosistas da ditadura, empenham-se hoje — com boa cobertura destes grandes meios de comunicação, diga-se de passagem — em criticar e falar da inconstitucionalidade e ilegalidade desta Lei. Os demais, grandes segmentos médios da intelectualidade, os governos federal e estaduais, dentre vários outros segmentos, diferentes categorias profissionais... apoiam, quase que de modo irrestrito, esta proposta de Comissão Nacional da Verdade que, segundo afirmam, apontará as violações de direitos humanos cometidas durante a ditadura civil-militar.

O que neste pequeno texto pretende-se mostrar é que — fugindo dessa dicotomia produzida e aceita naturalmente: os que apoiam versus os que repudiam — há uma outra posição que vem se afirmando, forjando outros modos de pensar uma Comissão da Verdade diferente desta Comissão do Possível.

É desta “terceira via”, ainda minoritária socialmente e totalmente silenciada pela grande mídia, que vamos falar um pouco. Para tal, há que pensar, mesmo que sucintamente, sobre a recente história de nosso país.

Desde a sanção da Lei da Anistia, em 1979, ainda em pleno período de ditadura, já se questionava a interpretação hegemônica que a ela se deu. Ou seja, pelos chamados “crimes conexos”, todos aqueles que cometeram atos contra a humanidade (sequestros, prisões ilegais, torturas, assassinatos e ocultação de restos mortais) estariam anistiados.

Alguns movimentos sociais nunca aceitaram tal interpretação e grandes juristas, como os Drs. Fábio Konder Comparato e Hélio Bicudo, já apontaram, brilhante e competentemente, que não há conexidade entre os atos praticados pelos grupos oposicionistas ao regime militar e o terrorismo de Estado que à época se implantou em nosso país.

Apesar disto, a perversa interpretação que ficou da Lei da Anistia é a de que os torturadores estariam anistiados.

Sabemos que, desde a Anistia até os dias de hoje, acordos foram feitos entre as forças políticas que respaldaram e apoiaram aquele regime de terror, e os diferentes governos civis que se sucederam após 1985.

Estes mesmo acordos — entre forças civis e militares — continuam dos mais diversos modos presentes na história política do Brasil, vigorando até os dias de hoje. Impõem, com isto, uma certa visão da história, mantendo e fortalecendo a chamada “história oficial”: a história narrada pelos “vencedores” que retira de cena as inúmeras memórias oposicionistas daquele tempo.

Neste cenário de acordos e concessões mútuas, em 1995, foi sancionada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso a Lei 9.140, que criou uma Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e concedeu aos desaparecidos um atestado de óbito. Ou seja, apenas os declarou mortos, sem no entanto esclarecer onde, quando e como ocorreram tais crimes e quem os cometeu. Em realidade, apenas um atestado de “morte presumida”. As provas de que esses mortos e desaparecidos estavam sob a guarda do Estado e/ou foram assassinados por agentes desse mesmo Estado deveriam ser demonstradas por seus próprios familiares. Com isto, de modo perverso, colocou-se o ônus das provas nas mãos dos familiares: os arquivos da ditadura continuaram trancados a sete chaves.
Por pressão de vários movimentos, criou-se, nos inícios dos anos 2000, em alguns estados brasileiros, Comissões de Reparação Econômica para familiares de mortos e desaparecidos e ex-presos políticos. Seguindo os acordos já estabelecidos, também essas comissões estaduais de reparação exigiram que os interessados provassem sua prisão, tortura, morte ou desaparecimento, visto os arquivos continuarem inacessíveis.

O próprio conceito de Reparação, enunciado pela ONU e aprovado em 2005, aponta para a necessária investigação, averiguação, publicização e responsabilização desses atos criminosos e para “medidas que possam impedir e, mesmo, garantir a não repetição de tais violações”.

O Brasil, de todos os países latino-americanos que passaram por recentes ditaduras, é o mais atrasado neste processo de reparação. Pela Lei 9.140/95 de FHC apenas se fez a reparação econômica, não se investigando, e muito menos publicizando e responsabilizando qualquer agente do Estado violador à época. O Brasil mal iniciou este processo de reparação. Entendemos que a compensação econômica é um direito, mas só tem sentido para a afirmação de algo novo em nossas vidas se for parte integrante e o final de um processo. Sem isto, as reparações meramente financeiras se transformam — e é o que tem ocorrido no Brasil — em um competente “cala-boca”, em uma proposta de esquecimento e silenciamento, em especial para os atingidos e para a sociedade em geral.

Atravessada por todas estas tensões e acordos políticos firmados, a Comissão Nacional da bojo de tais questões que foi votada a “toque de caixa”, em regime de urgência urgentíssima, a Comissão do Possível.

Esta proposta de Comissão, em sua 2ª versão , é bastante limitada. Já no próprio texto do Projeto de Lei estreitava-se a margem de atuação da Comissão, dando-lhe poderes legais diminutos, fixando um pequeno número de integrantes escolhidos diretamente pela Presidente da República, não tendo orçamento próprio, com duração de apenas 2 anos e desviando o foco de sua atenção ao fixar em 42 anos o período a ser investigado (de 1946 a 1988), minimizando na história do Brasil os anos de ditadura civil-militar (1964 a 1985). Além disso, impede-se que a Comissão investigue as responsabilidades pelas atrocidades cometidas e envie as devidas conclusões às autoridades competentes para que estas promovam a responsabilização dos criminosos. E, para culminar, a publicização de suas conclusões irá depender da própria Comissão. Ou seja, continuamos guardando sigilo, produzindo segredo sobre aquele período de terror. Continuamos produzindo esquecimento.

Os crimes cometidos pela ditadura civil-militar que controlou o Brasil por mais de 20 anos permaneceram desconhecidos e os documentos que comprovam essas atrocidades continuam em segredo, assim como os testemunhos daqueles que cometeram tais crimes.

Queremos sim uma Comissão Nacional da Memória, Verdade e Justiça onde todos os arquivos da ditadura sejam abertos e publicizados; onde o período de terrorismo de Estado (1964-1985) seja efetivamente investigado, esclarecido, publicizado.

Queremos sim que nossa história recente possa ser conhecida por todos, e que os agentes do Estado terrorista possam ser execrados socialmente e responsabilizados por seus bárbaros atos.Verdade foi votada como “aquilo que é o possível hoje”.

Há que lembrar que, em dezembro de 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA condenou o Estado Brasileiro a investigar, esclarecer e responsabilizar seus agentes que participaram do desaparecimento de mais de 70 opositores políticos na repressão contra a Guerrilha do Araguaia . Estendeu esta sentença aos cerca de 500 mortos e desaparecidos políticos, afirmando que a interpretação oficial da Lei da Anistia não é empecilho para tais atos reparatórios. O Brasil deveria responder à OEA no prazo de um ano. Até hoje nada foi feito. E, é no

Há muito ainda para dizer, como afirmava Marighella, e há que não ter medo de dizê-lo. Há que não entrar na chantagem do “possível” em nome de uma pseudo governabilidade democrática.

Um comentário:

  1. Dá-lhe, Cecília!
    Nossa luta acontece a cada instante, no dia-a-dia.
    Ou ficar a Pátria livre ou morrer pelo Brasil.
    Eliete Ferrer

    ResponderExcluir